domingo, 20 de abril de 2008

Tragédia ao vivo

Como se não bastasse o que chamamos há meses de “Caos Aéreo” - desde o acidente com o avião da Gol - hoje o Brasil assiste pela TV, ao vivo, um acidente de grandes proporções no aeroporto de Congonhas em São Paulo.

O AirBus da TAM, vôo 3054, deslizou na pista molhada ao aterrisar e o piloto não conseguiu controlar o avião que acabou alcançando a Avenida Washington Luís e atingindo o prédio da TAM Express onde pegou fogo.

Foto do acidente da TAM em Congonhas
Fotos do G1.

Nesse momento em que escrevo, não foi divulgado o número de passageiros feridos ou mortos. O número de pessoas à bordo é de 175 pessoas, entre tripulantes e passageiros. A TAM emitiu um comunicado oficial informando que qualquer notícia sobre passageiros será informada prioritariamente às famílias das vítimas antes de ser divulgada à imprensa, conforme a legislação brasileira.

(uma das primeiras matérias publicadas na internet no dia 17/07/2007 - www.seriguela.com)



MEDO DE AVIÃO



Nunca tive medo de viajar de avião. Os aviões me causam mais estranheza parados no solo do que na altitude. Tirando o momento da aterrissagem quando na maior parte das vezes meus ouvidos parecem estourar, todo o restante do vôo me é prazeroso. Até me divirto desfrutando dos serviços de bordo, cuja qualidade é, cada vez mais, inversamente proporcional ao custo de uma passagem aérea fora das promoções-relâmpagos de bilhetes a 50 ou 10 reais. Lembrei-me, agora, da prática ambulante daqueles que vendem nas ruas e atraem consumidores com gritantes promessas de produtos mais baratos. Mas, façamos justiça: as companhias aéreas – mesmo atoladas em dívidas e à beira da falência – mantêm seu requinte e optam por trocar a poluição sonora pela visual, enchendo-nos de GIFs animados.


Ao voar, fico sempre com uma sensação de familiaridade, mesmo viajando por entre nuvens. Você já reparou que quando se está voando – não sei a tripulação que deve lembrar que tudo ali é técnicas e máquinas e que não há nada de natural na tecnologia – a maioria das pessoas age como se voar a 900 km/h, percorrendo longas distâncias em frações de minutos e estando a mais de 10 mil metros de altura, fosse a coisa mais normal para um ser humano fazer. Bem dizer, nascemos para voar! Tanto quanto os pássaros com suas asas e penas, temos coletivas asas metálicas e um belo tanque de combustível. Ocorreu-me agora que essa naturalidade é necessária, do contrário cada avião seria uma bomba prestes a explodir zilhões de impulsos histéricos, causados pelo pânico de se estatelar ou de virar poeira no ar.


Não cheguei a liberar a Dona Histérica que existe em mim, mas em minha última viagem tive como companheiro o tal do medo de voar. Ia de Fortaleza para São Paulo, com meus pais – marinheiros, opa! Passageiros de primeira viagem – e meu irmão. Foi em agosto último, há um pouco mais de um mês do pior acidente aéreo da América Latina, ocorrido dia 17 de julho. Infelizmente, esse recorde é brasileiro, então um pouco dele também é meu, já que há 32 anos nasci nas terras canarinhas de Alencar... Pelo menos, tenho o consolo de não fazer parte do seleto grupo lúgubre que desde então carrega consigo marcas bem mais dolorosas: a da saudade e da tristeza que tomam conta da gente quando perdemos alguém de forma irreversível. É, porque mesmo eu que acredito em reencarnação, acho que quando morremos algo se perde pra sempre, pois a vida continua, mas continua de uma maneira diferente. Afinal, quando a morte chega deixa em nós um estranho vazio.


Mas, lá estava eu, na poltrona 19B, numa situação bem parecida com a de um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco que há décadas atrás cantava: “foi por medo de avião que eu segurei pela primeira vez a sua mão...”. A mão era da minha mãe. Naquela decolagem, pela primeira vez, tive a sensação de sinceramente segurar a mão de minha mãe. Ela estava receosa. Com aquele receio que todos sentem em sua primeira vez, seja na cama ou no céu. Tive a sensação de sinceridade por perceber o quão era sentido aquele aperto de mão. Ela que tantas vezes silenciosamente me protegera, agora pedia – também em silêncio – proteção a mim: sua filha mais velha e já experiente com as linhas aéreas... Naquela fração de segundos, eu não saberia dizer qual dos medos que me acometiam era o maior: se o de sofrer um acidente aéreo ou o medo de decepcioná-la. Nem agora consigo definir, pois nas armadilhas de minha memória não consigo reviver plenamente esse momento. Não consigo e nem quero. Já me bastam essas linhas.


Lembro, porém, que naquele momento fiz uma escolha: não decepcioná-la. Então, rapidamente me vesti da naturalidade costumeira daqueles habituados a voar e passei toda a segurança necessária. Deu certo. À medida que o avião ganhava altitude sentia que minha mãe era invadida pela certeza de que nós seres humanos nascemos para voar. Em alguns minutos, ela soltou minha mão e sorriu aliviada, aproveitando a viagem e o serviço de bordo. Mas, um medo ainda me intrigava; o medo de viajar de avião. Depois de tantas decolagens e aterrissagens estávamos eu e um iminente ataque de pânico, sentados na mesma poltrona, com cintos afivelados à espera do barulho de turbinas e dos solavancos característicos no alçar do vôo.


Tinha duvidado do poder da criatividade humana e de suas invenções. Por alguns instantes, perdi a certeza de que é natural ganharmos os céus... Essa inquietação me fez ir atrás dos motivos para a minha falta de fé. Em um lampejo, recordei as tantas e tantas reportagens sobre o pior acidente aéreo da América Latina que sistematicamente havia visto. Lembrei-me de como foi terrível todo aquele espetáculo midiático, toda aquela exposição. Mais uma vez, constatei como a mídia – com a desculpa de mostrar a verdade – especula e maltrata quando quer e como nós nos deixamos torturar... E percebi que o estranho vazio que a morte deixara em 17 de julho tinha respingado também em mim.


(texto publicado na coluna Crônicas Corriqueiras, revista eletrônica Sinceridade - www.sinceridade.com)