quinta-feira, 3 de julho de 2008

A MENINA NA CELA


Já são algumas madrugadas de um ano menino. 2008 começou e trouxe com ele azias de quem exagerou na bebida e na comida e ansiedades de quem quer perder gramas e quilos indesejáveis a uma silhueta esbelta. Mas, trouxe também esperança de que dias melhores virão. Uma esperança tão recorrente em nós que vira e mexe está estampada em cartões de boas festas, mas que antes mesmo de o carnaval chegar se dilui. Esperança já tão satirizada pela famigerada música popular brasileira e pelas telas de cinema de um Brasil em final dos anos 80. Rita, Cacá e Marília quem nos digam! Esperança que me intriga quando, nas cores cruzadas dos fogos de artifício, fortalece a convicção de que dias melhores virão, mas que no estopim de balas perdidas desvanece e carrega consigo o que há de melhor nos dias.


A fé em dias melhores vem com o nascer de um ano novo... Rege a lenda que uma estrela no céu apontou o caminho da luz divina, simbolizada pelo nascimento de uma criança redentora. Desde então, para nós, ocidentais, nascer é sinônimo de esperança. Daí, tudo nasce quando se quer acreditar que é possível ser feliz, nasce inclusive a esperança... Há 15 anos nasceu uma menina. Qual é o nome dela? Não sei. O que ela fez de tão extraordinário? Nada. E por que é dela que me lembro nesse ano que começa se milhares de meninas completaram também as 15 primaveras em 2007? Lembro-me dessa menina-moça por ela ter cometido o erro mais fatal de seus ternos anos. Ela roubou. E do roubo, a cadeia e na cadeia, vinte homens a lhe subtrair, todo dia, o melhor de suas futuras primaveras. Vinte homens a despetalá-la.


O que terá se passado no imo dessa moça-menina? Talvez, tenha rezado ou por se achar no inferno, pensou-se morta e sem tempo para preces... A TV fala em vinte e seis dias, um mês. Não há consenso no número de dias, mas se sabe que foram muitos para demasiado tormento. Entre as horas de cárcere, existiria descanso? No que pensava? O que sentia? Teria medo, raiva, complacência, desgosto? Não sei. Minha imaginação não suporta ir além das linhas dos jornais. Buscar entrelinhas é arriscar-me a adentrar numa dor que mesmo de outrem me dá medo. Medo de ir mais longe a ponto de tocar em estilhaços de um corpo doído, de uma alma ferida e me ferir. Esbagaçar algo em mim e não haver retorno. Fora um furto que a levara até ali?! Não lembro ninguém a comentar seu delito. Quem sabe seu verdadeiro crime é ser pobre e fêmea? Agora, pouco importa minha filosofia barata. Diante da lei, fora um furto que a jogara naquele covil. Um furto banal e roubam dela a inocência. Violam sua alma.


Imaginar o que se passou com essa menina – como é mesmo seu nome? Importa um nome? – causa-me náusea maior do que a que sinto quando depois de minhas entregas desmedidas à boemia. E, nos instantes de noticiários a narrar tamanha perversidade, perdi a fome e a crença na humanidade. “Dias melhores não virão!” Pensa meu desolado coração. Estamos todos embrutecidos por demais... na violência explícita, na indiferença protetora. Uma carapaça recobre cada um de nós. Eu, debaixo do meu disfarce indignado por me deparar com farrapos de gente a esgarçar o limite entre ser humano e ser fera, confesso que enquanto TVs, rádios e jornais noticiavam: Menina de 15 anos que ficou um mês presa na mesma cela com 20 homens na delegacia do município de Abaetetuba, no interior do Pará, teria sido estuprada por eles. Acusada de furto, a polícia justificou a apreensão da jovem por um mês dizendo que ela não teria documento de identidade.”, um alívio egoísta apoderou-se de mim. E silenciosamente, eu agradeci a Deus por não ser essa menina, por não conhecer essa menina e por não amar nenhum dos seus carrascos. Nem os de dentro nem os de fora da cela.


Mesmo com minha indignação e minha repulsa, fui humanamente egoísta e me recolhi como um caramujo.


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